sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Chapter 31



É dia 8 de Julho. Estou numa pastelaria qualquer a decidir-me se vou ou não. Na verdade, já tinha dito que sim. A questão a essa altura seria: em minha casa ou na tua. Nada de intimo, que envolvesse qualquer troca de fluídos estava em cima da mesa. Em cima da mesa, além do pão com manteiga e do café que tomávamos já de manhã, estava em mim, a responsabilidade em decidir onde é que ia apenas e só, dormir contigo.


Ambos sabia-mos que: após admitir-mos que a vontade de um beijo era mutua, o apenas e só dormir era um mito. E que, embora fosse algo que queria muito, era também algo que me iria certamente arrepender. Não era correcto, e o sentimento que na altura fervilhava em mim por ti, iria cair por terra, ias ser mais uma no final. Ias ser algo que não imaginava comigo, que apesar de tudo que dentro de nós fluísse, ias quebrar o mais básico e simples elo de uma relação: o respeito.


Ias embora e só voltavas em Setembro. E tudo que entre nós pudesse eventualmente acontecer, começaria e acabaria naquela noite — naquele amanhecer. E isso, a possibilidade de só te voltar a ver em Setembro, e que, por essa altura já tudo aquilo que entre nós poderia ser um pensamento, fazia-me saltar para uma cama onde hipocritamente te dizia: « achas que não sou capaz de só dormir? Até podias estar nua.» Não, não era capaz. E eu sabia, e tu sabias. Olhas-me nos olhos com um olhar que nunca entendi, dizias que esperavas que me decidisse, que já eram sete da manhã, e que se eu não quisesse ir dormir contigo, era compreensível. Pensei em mil e uma coisas, das quais o que positivo poderia acontecer. Bem, dormir contigo após tantos quilómetros percorridos, tantas palavras trocadas; ora faladas; ora escritas; ora por entre olhares que negávamos terem existido. O lado negativo do pós - apenas e só dormir-mos juntos não pensei, e finalmente te disse:


«Ok, vamos lá então»


«E onde vai ser?» perguntaste.


« A minha prima, por esta hora, já está a tomar o pequeno almoço, e de certeza que nos ia ver...»


«Tens vinte e seis anos. Qual é o problema?»


Na verdade, qual seria o problema? Nenhum, estava a arranjar obstáculos para que nada acontecesse, embora quisesse muito. Tu continuavas a olhar para mim com o olhar que não soube decifrar, sorrias de forma irónica enquanto me observavas a transformar um pacote de açúcar em dezenas de pequenos papéis. Entre todos eles via as dúvidas do querer e poder; do querer e não dever. Via-te de todas as formas que na altura e antes, já te tinha imaginado. Tinha quase a certeza de como seria o nosso beijo, e da forma que dormiria abraçado a ti. Olhava para ti enquanto imaginei tudo de bom que poderia ter a havido e nunca houve, tudo o que poderia estar prestes a acontecer, mas nunca mais se repetiria. Setembro, seria uma data demasiadamente longínqua para um sentimento em construção, e proibido.


«Queres que seja em minha casa?» Perguntaste.


«Pode ser.»


«Desde já te aviso que o meu quarto está todo desarrumado.»


«Eu pouco me importo com essas coisas.»


«Já te avisei...»

« Ok...» respondi, fazendo uma pausa.


«Vamos lá então?» perguntaste.


«Vamos...»


Levantámos-nos e fomos pagar. Enquanto isto, nem uma palavra dissemos. A pastelaria onde tinha-mos sido os primeiros clientes, já estava cheia. As ruas desertas onde havíamos caminhado horas antes, estavam cheias de pessoas que; a pé, de carro e de autocarro, iam trabalhar. O meu corpo, já se ressentia de todas as horas que tinha perdido contigo. Não me arrependia de um minuto que fosse, mas tinha medo de estar prestes a me arrepender.

Caminhamos uns dez metros em direcção a tua casa, estávamos quase a chegar à paragem de auto-carros onde esta espécie de jornada tinha começado, onde via pessoas sentadas onde já nós estivemos.


«Está tudo bem?» perguntei-te.


«Está, porquê?»


«Tens a certeza?»


«Sim, está tudo bem» respondeste sem um único sorriso.


«Não. Pergunto se tens a certeza disto. De dormirmos juntos.»


«Tu não tens?»


«Não sei...»


«Porquê?» perguntaste.


«Porque é tão errado.»


«Errado? Só vamos dormir, nada mais.»


«Não deixa de ser errado.»


«Porque tenho namorado?Faz de mim uma vaca?»


«Não disse isso...»


«Porquê que estás com tanto medo?» perguntaste. Olhavas muito séria para mim à espera de resposta. Menos de um metro nos separavam, e na verdade era isso: tinha medo. Coloquei as mãos nos teus ombros e fui o máximo sincero contigo:


«Porque tenho medo de gostar de ti.»


«Tens medo de gostar de mim?»


«Ao menos mostrei-te que ainda podes gostar de alguém...» reforçaste sorrindo.


«Isto é algum tipo de teste?! Queres ver até onde vou contra os meus princípios?!»


De que me valeriam os meus princípios? Se a minha vontade era quebra-los em toda a plenitude. De que me servia chegar a casa e no final, embora sentindo-me um homem melhor, não te ter? É simples: ter-te-ia da forma mais errada e menos especial. E tudo, que em três longas noites tive de ti, era sim especial. E se tivesse que acontecer algo entre nós, que fosse especial.


Duas horas antes, quando estávamos sentados sob estrelas e uma árvore que não sabia o nome, beijei-te de todas as formas possíveis e imaginárias dentro de um pensamento. E quando falamos de um pensamento, as hipóteses são infinitas. Perante todo aquele cenário de apocalipse: onde julgávamos que entre tantas estrelas, uma se movia. Discutíamos a possibilidade, que esta, desse a sensação de movimento pois estaria em queda livre para a nossa direcção. O mundo iria acabar, pelo menos o nosso. E nem por isso, o beijo que tanto queríamos, acabou por surgir. Fiquei uns minutos a olhar para ti, e, sem definir qualquer linha de pensamento, várias imagens surgiram: a cozinha da antiga casa da minha avó. Eu adorava aquela cozinha devido à deformação que havia no chão. Havia um alto, em forma de rampa, que servia para eu e o meu primo fazermos corridas de carros. Passávamos horas lá, e nunca tão pouco perguntei o porquê daquela rampa ali. Na altura, tinha um carro preto em ferro que me deu bastantes vitórias, faltava-lhe uma roda, mas mesmo assim, quase sempre ganhava sobre o carro novinho do meu primo. As corridas eram breves, o percurso era da rampa até ao fundo da cozinha — eram cerca de dois metros —, e o primeiro carro a embater no banco de madeira onde a minha avó dormia as suas sestas, ganhava. E quando eu ganhava, havia sempre discussão. Sorte, era a explicação do meu primo. Mais tarde, soube que a explicação era bastante simples: o meu carro, embora velho e sem uma roda, era mais pesado do que o do meu primo, e aí, entra a lei da gravidade.

Sinceramente, não sei porque raios, tal pensamento do passado, surgiu enquanto olhava para ti.


«O que foi?» perguntaste.


«Nada. Porquê?»


«Estas a olhar para mim.»


«Na verdade, apetecia-me beijar-te...»


«Tenho apêndice...» interrompeste. Nada como uma descida à realidade, depois de uma viagem aos meus oito anos de idade.


Nesses instantes, duas horas antes, tudo era romanticamente desastrado e quase perfeito. Tu falavas, eu falava, e todas as conversas nos guiavam à vontade de um beijo. E mesmo com a sua ausência, do beijo, era como se houvessem. Nada aconteceu, tudo aconteceu. Tudo se formou, cresceu, aconteceu dentro de um pensamento. Talvez isso fosse suficiente na altura. O beijo, fisicamente falando, nada mais era do que o culminar da nossa vontade, da união de duas vontades que se admitiam em todos os gestos que dávamos, de todos os passos que dávamos sem destino aparente. De forma quase sincronizada, os nossos pés sabiam onde caminhar, sabíamos em que ruas virar; ora à esquerda, ora à direita, todos os caminhos pareciam previamente combinados. Uma espécie de cumplicidade, uma sensação até de deja vu, contagiava, remetia-me a ti. Não te podia, não te devia. Tudo isto era masoquismo, uma tortura mental. Talvez por tudo isto, achaste que merecíamos dormir juntos. E merecíamos, digo-te: merecíamos muito mais, e de todas as formas. Se a nossa noite, acabasse ali, se a estrela realmente embatesse em nós, tudo isto terminaria de forma especial e correcta. Onde fomos um só, apenas e só, numa vontade, num pensamento.


Há sempre um mas, neste caso haviam vários. Quase que estragamos tudo ao acharmos que dormirmos juntos fora do timming, iria valorizar-nos. Enquanto estávamos parados à saída da pastelaria a ver todos os carros que passavam, entre pessoas, entre todas as palavras que me ocorreram; fossem elas belas, feias ou indiferentes, nenhuma me saiu. Vi ali, que o clima romantizado que se havia gerado há duas horas atrás, não tinha agora, uma razão de ser. Estávamos em plena consciência com a razão, e esta, não permitiria que estragássemos o que de tão belo tinha acontecido, e não acontecido. Esta beleza de cumplicidade, só existia no que não existia. Este tão contraditório sentimento fora de tempo, estava prestes a chegar ao fim. Teríamos agora, que elaborar um pretexto para que cada um seguisse para sua casa. Tentava despregar daquele imenso silêncio, um motivo mais forte que nós, para que assim, de forma subtil, fossemos embora. Contigo, os meus dias não tinham vinte e quatro horas, tinham doze, dez até. O tempo corria, e levava-te de mim. Havia porém, uma última alternativa para mim: ir dormir contigo. Talvez assim o tempo esticasse um pouco, talvez o principio a manter não fosse um motivo suficientemente forte para te ver ir embora assim. Não conseguia, dizer que sim nem que não. O tempo passava, e continuavas a olhar para mim, e eu, entre mais um cigarro, nem uma única palavra fiz sair da minha boca. Até que, para por fim a todo este silêncio, sugeriste: «é melhor cada um de nós ir para sua casa», eu imóvel, impaciente, nada respondi. O escape doloroso, estava à distância de um sim, cabia a mim, apenas dizer-to. Seria o sim mais hipócrita dos meus últimos tempos, o mais masoquista. Era a razão vs desejo, onde a razão teria — supostamente — que se sobrepor. Perante tal incapacidade de resposta da minha parte, tu, deste-me dois beijos no rosto e seguiste sozinha para casa. Ainda chamei por ti. Sem olhares para trás, observei-te a atravessares a passadeira e a ficares cada vez mais distante. Podia ter ido atrás de ti, mas preferi ir para casa. Não sabia se a titulo definitivo, tudo aquilo que não aconteceu, iria assim permanecer. Mas tudo aquilo, que, sem nada acontecer aconteceu, sem duvida permaneceu. Se agimos bem, ou mal?


Hoje é 8 de Agosto, um mês já passou. E sim, agimos bem.

1 comentário:

Inês disse...

Penso: gostaria de conhecer todas estas pessoas que sigo nos blogs. Na verdade, já conheço parte delas. És uma dessas pessoas. Li o teu blog de uma ponta à outra e sei parte da tua história, sei parte do que sentes. Ainda sonho um dia destes ouvir uma voz vinda de um lado qualquer dizer: o título do meu blog é "a minha vidinha". Sonho virar-me e saber quem tu és, sem tu saberes sequer que eu sei o teu passado, o teu presente.
É sem dúvida muito bom ler-te, poder acompanhar o teu sofrimento, as tuas inseguranças, as tuas alegrias, os teus pensamentos e os teus pequenos passos que tão bem descreves. O segredo está em sentir.

Agnes das Laranjas